Minhas aventuras na FKR

Murilo Dada
5 min readNov 20, 2020

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Imaginar combates com criaturas fantásticas não é um trabalho simples.

O movimento denominado Free Kriegspiel Revolution (ou Renaissance) é um movimento de resgate à um modo mais livre de jogar RPG, buscando principalmente uma experiência do ponto de vista dos jogadores mais diegética. Em resumo, diegético é a parte que fala da narrativa em si, enquanto dados, estatísticas de personagem são elementos não-diegéticos. A intenção aqui não é discutir a FKR em si, mas relatar minha experiência e pensamentos a partir dela. Para saber mais sobre o assunto, recomendo muito o texto do Rafael Massuia em seu blog Masmorreiros.

Existem diversos sistemas gratuitos para se jogar no estilo FKR, mas eu resolvi criar um que atendesse minha curiosidade. Ele evita dados ao máximo e se fia em dois pilares: 1) o mestre é capaz de arbitrar todas as decisões dos jogadores se baseando nos elementos de descrição e do universo. 2) Se o mestre propôs um desafio aos jogadores, é porque eles precisam ter alguma ideia de como resolvê-lo, caso contrário, ele falha automaticamente. Você pode conhecer o sistema aqui.

Para por o sistema à prova, o testei com jogadores bem experientes em OSR (Old School Renaissance), no cenário super parametrizado de Forbiddens Caverns of Archaia.

Proezas

A primeira coisa que pude notar é que os jogadores foram criativos do começo ao fim. Descrevendo em detalhes como reduzir os riscos de uma escalada partindo uma trilha até a entrada de uma caverna. O personagem que era mais estabanado (esse era o termo usado na sua ficha), acabou escorregando alguns metros (eu assim decidi levando em conta a ausência de uma solução de precaução e a característica do personagem). Para sair da situação, o grupo foi criativo usando equipamentos e descrição detalhada para fazer esse personagem subir.

A segunda grande proeza com alto risco foi pular de um lado de um precipício para outro. O solo do lado dos personagens era liso e descia em direção ao abismo. O chão do lado oposto estava uns 3 metros depois e 10 metros abaixo. Para chegar ao outro lado, eles tiveram, a princípio, uma solução que parecia ao mesmo tempo maluca e sensata. O personagem mais hábil fisicamente aproveitou a pedra lisa e desceu surfando sobre a sua capa, pulando na beira para alcançar o outro lado. Apesar de ter vários elementos a ser favor (a distância percorrida antes da "surfada", a escolha do lado certo da capa de couro, a característica "felina" do personagem) eu decidi por um sucesso parcial, ele conseguiu pôr apenas um dos pés na outra beirada. Foi então que o outro personagem, um mago, escolheu por realizar uma magia que deu o empurrãozinho de vento necessário para o personagem chegar a salvo do outro lado.

Combate

Ocorreram três confrontos na sessão. Se você ainda não jogou o módulo Forbidden Caverns of Archaia, pode ser que você encontre um spoiler aqui. As primeiras criaturas que eles encontraram foram uns bichos bicudos que ficam presos no teto se disfarçando de estalactites e caem sobre suas presas. Eles se atentaram ao indícios (uns buracos circulares no chão) e as afugentaram usando arcos. Como decidir se as flechas acertam? Nenhum personagem que tentou usar os arcos era ruim em físico e não havia qualquer risco em errar, então eu determinei que não era um desafio, ou seja, sucesso automático. Mais a frente, eles encontraram de novo as criaturas, mas desta vez com uma falha de atenção, uma delas acertou a mão de um dos personagens.

O segundo embate foi contra baratas gigantes. O principal recurso usado pelos jogadores foi uso de fogo para afugentá-las e de ração para distraí-las. Eu julguei as ações a favor deles, e como critério principalmente o fato de que as criaturas estavam com fome e que dificilmente conhecem o fogo e a luz vivendo em uma caverna escura.

O terceiro e último embate foi contra sapos gigantes e acredito que tenha sido o momento onde encontrei mais problemas para gerir a situação. Assim que os jogadores chegaram perto o suficiente os sapos começaram a jogar suas línguas para prendê-los, a reação geral foi atacar as línguas com armas de mão ou usando uma flecha como adaga. Como eles estavam em minoria, determinei que um das línguas não pôde ter sido atingida e começou a puxar o personagem até morder o seu braço, ficando ele dentro da boca. O contra-ataque foi bem criativo, com os personagens mirando os olhos grandes dos sapões e usando o corpo de um deles como obstáculo. Como os sapos começaram a levar a pior, apesar de ter moído o braço de um personagem, eu determinei que eles recuassem.

Os momentos que senti serem problemáticos: os combates acabam favorecendo os Personagens Jogadores pelo simples fato que, em geral, você vai permitir que eles reajam aos ataques, e vai acabar não dando a mesma oportunidade aos inimigos. Surpreender os jogadores é um problema difícil de resolver porque existe uma chance grande de ser injusto. Você deu indícios suficientes de que havia algo à espreita? Eles procuraram por estes indícios? A ordem natural do combate é difícil de ser emulada apenas no diálogo (não que turnos também seja a melhor simulação).

Os momentos que senti serem positivos foi o combate vivo, dinâmico e criativo. Diante de regras bem estabelecidas, era possível que os jogadores tivessem escolhido por ataques comuns, sem visar qualquer parte dos corpo dos oponentes, ou não escolher um posicionamento vantajoso ou ações diferentes.

Aprendizados

A liberdade na hora de escolher as ações é um grande trunfo do sistema. Talvez seja necessário aplicar algum tipo de mecânica mais concreta para algumas situações de incertezas e vou procurar encontrar uma solução que ainda se situe completamente dentro do espectro diegético.

Mas acredito que o maior aprendizado vai justamente para minha primeira paixão. Os jogos OSR podem e devem ser mais livres. As mecânicas só devem entrar na mesa depois de acionadas por uma narrativa e devem ser influenciadas por ela. A descrição do que o jogador faz torna o ataque mais fácil? Que tal adicionar um bônus ou jogar um dado maior que o D20? Por outro lado, a descrição do jogador pode conferir algum tipo de sucesso complementar ou alternativo. Que tal aumentar o dado de dano de d6 para um d8 para 2d3? Ou adicionar um efeito extra ao resultado de um bom sucesso. O mestre não pode esquecer do seu principal papel, julgar as ações e usar as regras como ferramenta e não ponto de partida.

Fica aqui meu incentivo para mestres mudarem alguns conceitos bem marcados de seus jogos OSR ou modernos. Não coloque qualquer regra como absoluta. Não é possível que apenas parte dos inimigos seja surpreendida, mesmo que o seu sistema vá para um tudo ou nada? O que acontece se o mago resolve usar armadura de placas, quando as regras dizem que ele não pode? O que acontece quando o clérigo já usou todas as suas "magias", mas ele faz uma promessa desesperada ao seu deus? E se um personagem disser que entra na frente de um golpe para proteger um aliado, ainda que que não exista essa possibilidade em um jogo estruturado em rodadas? Experimentar um jogo FKR, mesmo que você goste dos parâmetros dos demais jogos, pode dar um estalo essencial à sua experiência na mesa, como mestre ou jogador.

Participaram como jogadores Izakiel Paes, Rafael Balbi e Francisco Siqueira.

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Written by Murilo Dada

Em geral, escrevo sobre jogos e mudo de opinião diante de novos fatos ou novas reflexões.

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